3.1 A JUSTIÇA SOB UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Inicia-se procurando uma conceituação que possa sustentar a perspectiva filosófica.

Segundo Noberto Bobbio "justiça é um fim social, da mesma forma que a igualdade ou a liberdade ou a democracia ou o bem-estar".[1]

Este breve conceito de Bobbio está em consonância com a concepção de John Rawls, conforme sua obra, Uma Teoria da Justiça, onde ensina:

Primeira cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdade básica, igual que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para os outros. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e b) vinculadas a posição e cargos acessíveis a todos.[2]

A partir desta compreensão segue-se uma seqüência histórica sobre a ótica de algumas das principais autoridades do mundo científico e cultural da humanidade.

Desta forma tem-se que, para Platão,[3] a Justiça só poderia ser encontrada através do conhecimento.[4] Já Para Aristóteles, discípulo de Platão, "justiça é uma virtude."[5] "Virtude na observância da lei, no respeito aquilo que é legítimo, e que vige para o bem da comunidade".[6]

Para Santo Agostinho[7] "Justiça é o dar a cada um o que é seu".[8] Neste sentido, a Justiça humana é aquela que se realiza entre os homens, ou que se realiza como decisão humana em sociedade, sendo responsável por comandar o comportamento humano, nas relações entres os seres humanos e com o que o cerca. Mas esclarece Santo Agostinho, se os homens querem pensar sobre o que preexiste, devem recorrer à idéia de Deus, que por ser a origem de tudo, o controle do todo, só pode ser o legislador maior do universo.[9]

Ensina Santo Agostinho que, quando a lei humana se afasta de sua origem que é a lei divina, seu destino só pode ser o erro, o mau governo das coisas humanas. No entanto, admite Agostinho: as leis humanas são necessárias para garantir a ordem social, e, para serem chamadas em seu contexto de Direito, devem convergir para a justiça. Sendo assim, a justiça é essencial para o Direito, sem ela, o Direito passa a ser mera instituição tirânica, transitória humana.[10]

Kelsen, no entanto, afirma que o Direito não se confunde com justiça.[11] Afirma que se a "idéia de justiça tem alguma função, é a de ser um modelo para a feitura de bom Direito e um critério para distinguir bom e mau Direito".[12]

Kelsen através da Teoria Pura do Direito insiste em uma separação clara entre o conceito de Direito e o de Justiça.

A Teoria Pura do Direito "renuncia a qualquer justificação do Direito positivo por uma espécie de supra Direito, deixando essa tarefa problemática à religião ou à metafísica social".[13]

Se o direito positivo não tem segundo sua teoria, a responsabilidade de ser justo cabe a religião, junto às demais ciências sociais, a construção da legislação justa, capaz de gerir o bem comum; caso contrário ter-se-á a legislação a serviço do poder da tirânia.[14]

Na continuação da visão da justiça sob uma perspectiva filosófica tem-se o pensamento de Santo Tomás de Aquino, para quem justiça "consiste em dar a cada um o que é seu, nem a mais do que é devido ao outro, e nem a menos".[15]

Santo Tomás de Aquino afirma que justiça não tem a ver com um exercício do intelecto especulativo, puramente reflexivo; a justiça é, pelo contrário, um hábito, portanto, uma prática, que oferece a cada um o seu, pelo bom senso.[16]

Com base no pensamento de Santo Tomás de Aquino tem-se que o Direito não é justiça, maior das virtudes, mas busca a realização da mesma. Neste caso "todo o conteúdo de direito positivo deve-se adequar as prescrições que lhe são superiores e fontes de inspiração: o direito natural e o direito divino. Por esse pensamento, a lei posta pela autoridade não exaure o Direito".[17]

Mas, se ao juiz cabe apenas o papel de dizer o que é lícito ou ilícito, então não há necessidade de um ser humano para dizer o Direito, usar-se-á uma máquina, insensível, fria e rápida. Por outro lado, se ao operador do Direito cabe também dizer o que é justo ou injusto, então, só uma alma humana pode julgar outra alma humana, não se limitando ao arremesso da lei ao caso concreto. É o que explica o Direito Alternativo "que rompe com o saber positivista, não tendo o direito como neutro, e sim como a vontade de determinada classe".[18]

Segundo leciona Eduardo C. B. Bittar, a filosofia escolástica[19] a qual pertencia Santo Tomás de Aquino, exaltava a existência de uma lei divina e eterna. Na lei divina não existiria nenhuma espécie de erro ou falha, em função de sua natureza que transcende à matéria; "dessa forma, além de perfeita, seria imutável".[20] Nessa vereda a tarefa de incorporar a lei divina no âmbito da lei humana é tarefa do Direito. Sendo que, essa lei divina e eterna, emana de uma força sobre-humana, qual seja: Deus.[21]

A esse ensinamento de uma lei divina que seria justa, Kelsen contra argumenta:

Do ponto de vista da cognição racional, a justiça absoluta de Deus tem de estar necessariamente em conflito com outra qualidade absoluta, tão essencial quanto a primeira, isto é, sua onipotência. Se Deus é onipotente, nada do que efetivamente acontece pode acontecer contra ou sem o seu desejo. Como a injustiça efetivamente existe - se não existisse, a idéia de justiça não teria sentido -, como a onipotência de Deus é compatível com sua justiça.[22]

Daí porque para Rousseau o fundamento de toda lei deve ser a noção de justiça, que deve prevalecer em qualquer convenção humana. Assim, conforme sua teoria, a justiça das leis não vem de Deus, de uma força metafísica ou de uma lei divina e eterna. Mas sim, dos próprios seres humanos que sabem respeitar os limites de legislar segundo a natureza.[23]

Porém, Kelsen falando sobre justiça na natureza afirma:

De fato ao julgarmos a natureza do ponto de vista da justiça, deveremos admitir que ela não é justa: a um dá saúde, a outro doença; a um inteligência, a outros, poucas luzes. Nenhuma ordem social poderá compensar totalmente as injustiças da natureza.[24]

Como se percebe do estudo dessa seção, muitos são os pontos de vista filosóficos sobre justiça. Passar-se-á à próxima seção, considerando a seguinte declaração de Kelsen:

De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim; uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância.[25]

Do capítulo anterior, na seção 2.3, subseção 2.3.2 entendeu-se com o grande filósofo Confúcio, que a verdadeira lei, advém da essência humana, ligada a sua tradição, baseada na honra e na moral, por conseguinte, na dignidade do ser humano. Logo, se o Direito pode ser justo ou injusto, apenas deve ser lícito? Está claro, que para o bem estar do ser humano e sua sociedade, a justiça deve avocar para si, o direito de dizer o Direito além do mero pensar positivista.

Segue-se nessa pesquisa, perquirindo a justiça como norma, preceito social, buscando um posicionamento claro, da importância da justiça, seja para o direito ou quaisquer outras atividades humanas.

[1] BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. tradução portuguesa de Carmen Varrialle et all, 8. ed. Brasília: Ed. UNB, 1995. v. 1. p. 662.

[2] RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 64.

[3] PLATÃO. Nasceu em Atenas, pequena ilha grega do mar Egeu. A data de seu nascimento não é precisa, entre 428 ou 427 a.C. Sua família pertencia à alta aristocracia ateniense. O nome Platão designa alcunha que lhe foi dada, para designar o extraordinário volume de sua testa ou a largura excepcional dos ombros. Ainda na tenra idade foi encaminhado para receber educação destinada às crianças das famílias nobres. Platão estudou com Sócrates, entre os anos a.C. 408 a 399, a partir de seus vinte anos. PLATÃO, Gaston Maire. trad. de Rui Pacheco. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996. p. 10.

[4] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Teoria Sobre a Justiça: apontamentos para a história da filosofia do direito. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2000. p. 30.

[5] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 93.

[6] Ibid., 95.

[7] Agostinho cresceu no norte da África colonizado por Roma, educado em Cartago. Foi professor de retórica em Milão em 383. Seguiu o Maniqueísmo nos seus dias de estudante e se converteu ao cristianismo pela pregação de Ambrósio de Milão. (há mais de 350 sermões dele preservados, e crê-se que são autênticos) Tem muita influência na história do pensamento ocidental, foi influenciado pelo platonismo e neoplatonismo, particularmente por Plotino, Agostinho foi importante para o batismo do pensamento grego e sua entrada na tradição cristã, e posteriormente na tradição intelectual européia.VICENTE, et al, 1994, p. 137.

[8] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de ética jurídica: ética geral e profissional. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 265.

[9] BITTAR, 2004, p. 181.

[10] Ibid. p. 195.

[11] KELSEN, 2001, p. 292.

[12] KELSEN, loc. cit.

[13] Ibid., p. 299.

[14] LIMA, Alceu Amoroso. "Introdução" à encíclica mater et magistra, do Papa João XXIII. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963, passim.

[15] BITTAR, 2005, p. 273.

[16] BITTAR, 2004, p. 203.

[17] Ibid., p. 216.

[18] PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 95.

[19] A Escolástica (ou Escolasticismo) é uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade. Por assim dizer, responsável pela unidade de toda a Europa, que comungava da mesma fé. Esta linha vai do começo do século IX até ao fim do século XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. Este pensamento cristão deve o seu nome às artes ensinadas na altura pelos escolásticos nas escolas medievais. Estas artes podiam ser divididas em trivio (gramática, retórica e dialéctica) ou quadrívio (aritmética, geometria, astronomia e música). A escolástica resulta essencialmente do aprofundar da dialéctiva. VICENTE, et al, 1994, p. 1343.

[20] BITTAR, 2004, p. 227.

[21] BITTAR, loc. cit.

[22] KELSEN, 2001, p. 28.

[23] BITTAR, op. cit., p. 250.

[24] KELSEN, op. cit., p. 3.

[25] KELSEN, 2001, p. 25. 

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