3.2 A JUSTIÇA COMO PRECEITO SOCIAL

Como foi visto na seção anterior, a justiça deve ser objetivo do Direito. No entanto, o que se tem observado é um direito contido pela dominação da lei. Sendo assim, o juiz de acordo com o Direito positivo, apenas limita-se a julgar as partes de acordo com o que é licito ou ilícito, ensinamento da Teoria Pura do Direito, através da ciência jurídica.[1]

Como ensina o professor Eduardo C. B. Bittar:

Primeiramente Kelsen separa as normas jurídicas, como objeto de estudo do Direito e as normas morais, como objeto de estudo da Ética. Assim discutir justiça é falar das normas morais. Desta forma as normas jurídicas são objeto de estudo da ciência do Direito. Enquanto as normas morais são objeto da Ética como ciência.[2]

Com relação a este posicionamento, André Franco Montoro, em sua obra Introdução à Ciência do Direito, assim se pronuncia:

Alguns autores afirmam que o direito nada tem a ver com a justiça. É simples convenção, como afirmaram Carméades ou Epicuro, no passado, e de certa forma reafirmam certas correntes do liberalismo moderno ao admitir que "quem diz contratual diz justo". Para a generalidade dos seguidores do positivismo jurídico, o direito se reduz a uma imposição da força social, e a justiça é considerada um elemento estranho à sua formação e validade. Para alguns, como Kelsen, os critérios da justiça são simplesmente emocionais e subjetivos e sua determinação deve ser deixada à religião ou à metafísica.[3]

Nesse caso, das lições de Kelsen, explicadas por Bittar, um Direito positivo pode contrariar algum mandamento da justiça e nem por isso deixa de ser válido. "O Direito não precisa respeitar um mínimo moral para ser definido e aceito como tal, pois a natureza do Direito, para ser garantida em sua construção, não requer nada além do valor jurídico".[4] "Assim é válida a ordem jurídica ainda que contrarie os alicerces morais".[5]

Isso não quer dizer que Kelsen não se preocupa com a justiça, lembra Bittar, isso significa que toda discussão opinativa sobre valores possui um campo específico de estudo, o qual se costuma chamar de Ética. Somente nesse campo, Kelsen aceita discutir justiça ou injustiça. Então, Kelsen estuda o que é justo ou injusto, só que não no campo da Teoria Pura do Direito. Sabe-se disso, porque suas principais obras tratam de Justiça. Destacando-se entre várias investigações a justiça na Sagradas Escrituras, objeto deste estudo.[6]

Assim, importa explicar, ainda que seja assunto reservado ao próximo capítulo, desta monografia, que Kelsen chegou a sua Teoria Pura do Direito, descartando por incoerência os diversos posicionamentos históricos sobre o que seja justiça, demonstrando a total relatividade da idéia e a necessidade de isentar o preceito social do conceito de justiça.

É opinião de Kelsen, que justiça não pode ser concebida de forma absoluta, e que, não pode ser entendida como algo imutável, comum a todos os homens, de conteúdo inexprimível, tratando-se pelo contrário, de algo extremamente mutável, variável. Por ser algo tão relativo, Kelsen considera que deve induzir a tolerância, e a tolerância à aceitação.[7]

Segundo Bittar, Kelsen desenvolve, em suas investigações, a idéia da justiça nas Sagradas Escrituras como uma justiça extremamente contraditória. Isso porque a Palavra Revelada deveria ser a fonte não de idéias diferentes, incompatíveis, conflitantes, mas de harmonia, integração, coesão, signos da imutabilidade da lição divina. Então diz Bittar: "ele investiga as Sagradas Escrituras de forma minuciosa, simplesmente para mostrar incongruências dos textos sagrados, sobretudo aqueles existentes entre o Antigo e o Novo Testamento".[8]

Embora Assunto que será abordado no próximo capítulo, desde já, se aproveita o entendimento de Bittar, quando comenta o posicionamento kelseniano dizendo:

Trata-se de estudar, com essas ambições, uma fonte religiosa sobre a justiça (Bíblia), aonde sua concepção vem estritamente fundada no poder da Revelação de Deus (atos e palavra); seus atos são suas intervenções na vida das pessoas, sua palavra, aquela dada nos Evangelhos. Esse tipo de investigação deveria ser suficiente para identificar um conceito único e definitivo de justiça (a justiça como valor absoluto), ou seja, um sobre o qual se pudesse confiar toda fé, toda esperança, todo fulgor da alma, podendo-se, então, dormir o sono científico dos justos.[9]

Decepciona-se Kelsen e decepcionam-se aqueles que dele esperavam uma lição coerente de justiça absoluta, retirada das Sagradas Escrituras, transmitida pela divindade, que pudesse ser utilizada no mundo dos seres humanos.

Daí porque continua Bittar:

Existe, porém, uma franca contradição entre o Antigo Testamento (principio da retaliação ensinado por Javé) e o Novo Testamento (com Cristo, a lei do amor e do perdão). É essa contradição que motiva à descrença num valor absoluto, perene, único, que induz ao relativismo. A diferença é muito acentuada, destaca Kelsen, entre os ensinamentos dados pela lei mosaica (Moisés e o Decálogo), a doutrina crística (Jesus e sua pregação) e os ensinos paulianos (Paulo de Tarso e suas Cartas e Exortações).[10]

Disso tudo, o que se percebe é que justiça como preceito social, encontra dificuldades para se realizar no mundo jurídico positivo. Sendo relegada às normas morais, porque realmente o ser humano não tende a ter o mesmo juízo de valor sobre justiça. Se para o masoquista, justiça é deixar-se agredir, para o sádico justiça e agredir violentamente.

No entanto, Rizzatto Nunes, citando Miguel Reale, diz que as normas jurídicas estão fundadas numa pluralidade de valores, tais como: liberdade, igualdade, ordem e segurança. Mas aclara: Justiça, não se identifica com nenhum deles; "é, antes, a condição primeira de todos eles, a condição transcendental de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os valores valham".[11]

Para Rizzatto Nunes, em seu Manual de Introdução ao Estudo do Direito, "a Justiça é fundamento do ordenamento jurídico e o fim buscado de harmonia e paz social, só se concretiza numa sociedade justa. Por isso a Ciência do Direito e todos os que militam no e com o Direito devem pautar-se na Justiça".[12]

Nesse contexto, a Justiça pode ser apresentada como uma qualidade subjetiva do individuo, uma virtude, mas virtude especial traduzida na formula: vontade constante de dar a cada um o que é seu.[13] Ou pode ser vista de forma objetiva, como realização de uma ordem social justa, isto é, como uma qualidade da ordem social. No entanto, como dizia Platão: "Não pode haver justiça sem homens justos".[14]

Na obra de André Franco Montoro, Introdução à Ciência do Direito colhe-se a seguinte lição:

Qual a direção ou ideal visado pela 'norma'? Qual o valor fundamental que orienta esse dever-ser? Basicamente, a sentença deve ser 'justa', a lei deve ser 'justa', a obrigação e a indenização devem ser 'Justas' o salário e o preço devem ser 'justos'. Com razão escreveu Del Vecchio: 'a noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico'.[15]

Mas se acredita que a justiça não é a razão do preceito ou da norma, então o Direito assume outro significado que bem expressa o professor Roberto A. R de Aguiar, em sua obra O que é Justiça uma abordagem dialética, quando leciona:

Em verdade a grande técnica do direito é fazer crer àquele que sofre suas sanções, ou que não tenha seus interesses defendidos, que essa ordem é natural, que o mundo é assim mesmo e que o legislador e o judiciário, além do poder executivo, tudo fazem para melhorar a vida dos oprimidos, mas que existem certas coisas que não têm jeito. Um exemplo dessa característica está no hipócrita e farisaico discurso de recuperação, que justifica a prisão dos cidadãos. Em verdade, a pena existe para macerar, para punir, para mostrar à sociedade que o poder segrega de seu convívio aqueles que, não sendo do poder, transgridem normas jurídicas editadas por ele. É nada mais nada menos que uma técnica de administração do controle.[16]

Este posicionamento do professor Aguiar será por este trabalho aproveitado de forma esclarecedora, para o ensino que se pretende construir, o que fica claro desde já, é que justiça como preceito social é fundamental para que haja realmente o Direito.

Passar-se-á agora a avaliar a justiça como valor jurídico.


[1] Ibid., p. 262.

[2] BITTAR, 2004, p. 343.

[3] MONTORO, 2000, p. 124.

[4] KELSEN, 1998 apud BITTAR, 2004, p. 343.

[5] Id., 1976 apud BITTAR, loc. cit.

[6] Id., 2001, p. 364.

[7] BITTAR, op. cit., p. 344.

[8] BITTAR, 2004, p. 344.

[9] Ibid., p. 345.

[10] Ibid., p. 345.

[11] NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito: com exercícios para sala de aula e lições de casa. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 279, apud.,

[12] Ibid., p. 280.

[13] Ibid., p. 280.

[14] Ibid., p. 280.

[15] MONTORO, 2000, p. 122.

[16] AGUIAR, Roberto A. R. de. O que é justiça uma abordagem dialética. 4. ed. São Paulo: Editora Alfa Omega, 1995. p. 118.

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